quarta-feira, 16 de julho de 2025

Resenha: As cidades obscuras de Peeters e Schuiten

 

As cidades obscuras de Peeters e Schuiten

 

Prof. Dr. Roberto Elísio dos Santos[1]

 


 O homem que cavalga longamente por terrenos selváticos sente o desejo de uma cidade.

Italo Calvino

 

O escritor cubano-italiano (1923-1985) apresenta cidades, todas elas com nomes femininos, citadas por Marco Polo a Kublai Khan. Por serem invisíveis, não é possível encontrá-las. Assim é que, ao longo de milênios, existem as que são mundialmente conhecidas, as desconhecidas e as esquecidas (encontradas apenas por arqueólogos diligentes), grandiosas em seu apogeu e enterradas sob terras e areias na sua velhice. Há também as míticas, contadas em textos de ficção a partir da imaginação criativa de poetas e romancistas, como Atlântida e Eldorado.

As cidades imaginadas pelo pesquisador e roteirista francês Benoît Peeters e pelo quadrinista belga François Schuiten, que utiliza o estilo da linha clara, possuem arquitetura retrô-futurista, com prédios envidraçados, rampas, escadarias e, como em Brentano, de L’ombre d’un homme, adereços nas mobílias e edificações baseados nas fotografias de plantas em close-up feitas pelo escultor alemão Karl Blossfeldt, cujo nome foi simplificado para designar a urbe onde se passa a história. Os helicópteros, bondes e trens seguem a mesma forma, misturando elementos antigos e modernos. É por este ambiente que vaga o homem cuja sombra vai se transformando. Cada história é focada em homens doentes e melancólicos, que, como sonâmbulos ou “bêbados sem alma”, parecem percorrer locais oníricos, de pesadelos, labirínticos, que escondem segredos. As mulheres, por sua vez, são, ao mesmo tempo, sensuais, corajosas e impetuosas, a exemplo de Sarah, Sofia e Milena, entre tantas outras.

Talvez a inspiração para Les murailles de Samaris tenha sido a cidade murada histórica Samaria, localizada na atual Cisjordânia. Atualmente, sobraram ruínas, colunas, caminhos largos calçados com pedras e habitações rústicas intactas.  No álbum, ela é apresentada como “uma arquitetura que parecia se misturar”, com edifícios altos e construções palacianas e religiosas, mas “conservando os traços das civilizações que abrigou” ao longo do tempo. Pode-se observar, também, a combinação de componentes de várias épocas nos figurinos usados pelos personagens. É ali que um flâneur procura descobrir os segredos do local, sem deixar de observar ruelas e seus habitantes, para escrever um relatório para os governantes da metrópole imaginária de Xhystos. Enquanto caminha, percebe a “bizarrice” das janelas e portas sempre fechadas, a ausência de crianças e a impressão de que as construções mudavam de lugar.

Em La fièvre d’Urbicande, ao contrário, tem como cenário uma cidade toda projetada em linhas retas. A narrativa tem início com a petição escrita pelo “urbicteto” Eugen Robick, ao qual desagrada o estilo barroco e de arte nouveau de Xhystos e outros lugares – os números dos capítulos possuem um design construtivista. Seu objetivo é conseguir construir a terceira ponte entre o norte e o sul, separados por um rio, para que seu projeto arquitetônico seja completado e para que haja uma harmonia estética. No entanto, as autoridades não desejam a junção das duas margens por questões xenofóbicas, políticas e sociais. A mudança começa quando ao protagonista é entregue um cubo feito de material (minério?) desconhecido que cresce “como uma planta” e acaba por ligar os dois setores. Em princípio, a situação é vista como ameaça, principalmente por um político conservador. Depois da união, a estrutura permite o encontro e o intercâmbio dos habitantes, que promovem festas. A ampliação da edificação continua, até ela desaparecer no céu, o que força a confecção de uma ligação entre os dois espaços.

La Tour, da mesma forma que La fièvre d’Urbicande, é impressa em preto e branco, à exceção de imagens pintadas e a parte final, que se passa fora da Torre. O principal personagem, Giovanni Battista, é um conservador – sua missão é manter a construção intacta e consertar as paredes quando as pedras usadas se soltam. Esperando, em vão que um inspetor apareça, resolve descer. Para tanto, constrói uma espécie de paraquedas que se despedaça e leva à queda até uma cidade, onde recebe a missão de fazer o reconhecimento (assim como o protagonista de Les murailles de Samaris) e chegar ao topo. Ele aceita o encargo e parte, levando consigo a jovem Milena. Os trajes lembram o Renascimento, mas a edificação indica que seu começo se deu eras atrás. Cada pavimento possui estilos diferentes, assim como objetos e máquinas. O motivo do erguimento dessa obra monumental, inspirando-se em Babel, justifica-se pelo desejo de “tocar Deus com suas próprias mãos”. Há que se destacar também o uso de fontes que se assemelham a caracteres romanos entalhados em pedras, destroços ou restos de colunas que aparecem no início de cada capítulo.

Outras cidades, imaginárias ou não, são o espaço das narrativas. Mesmo as existentes, como Bruxelas e Paris, não como são conhecidas, mas mostradas de formas diferentes, a ponto de só alguns elementos serem cognoscíveis, sendo um exemplo a Torre Eiffel envolta em estruturas circulares.

 

Referências

 

CALVINO, Italo. As cidades invisíveis. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2003.

PEETERS, Benoît; SCHUITEN, François. L’ombre dun homme. Bruxelles: Casterman, 1999.

PEETERS, Benoît; SCHUITEN, François Les Murailles de Samaris. Bruxelles: Casterman, 2007.

PEETERS, Benoît; SCHUITEN, François. A febre de Urbicanda. Lisboa: Edições 70, 1987.

PEETERS, Benoît; SCHUITEN, François. A Torre. Lisboa: Edições 70, 2019.


[1] Jornalista, professor aposentado do Programa de Pós-graduação da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS). Livre docente em Comunicação pelo CJE/ECA-USP e vice coordenador do Observatório de Histórias em Quadrinhos da ECA-USP.

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