Concedida ao site Quadrinhos em Questão em 22 de maio de 2012, a entrevista abaixo, da Profa. Dra. Valéria Bari, pesquisadora do Observatório de Histórias em Quadrinhos da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, apresenta um pouco de sua trajetória de pesquisa e de suas preocupações/motivações na área. Ao transcrevê-la neste blog, buscamos registrar e conservar a produção intelectual dos componentes do Observatório de Histórias em Quadrinhos, e, desta forma, atingir diretamente os interessados pela pesquisa em histórias em quadrinhos no Brasil.
Nascida em São Paulo, Valéria Aparecida Bari graduou-se em Biblioteconomia e Documentação pela Universidade de São Paulo (USP), em 1990. Ainda na USP, cursou o mestrado em Ciências da Comunicação (2002) e doutorado em Ciência da Informação (2008). No segundo semestre de 2006, cumpriu estágio de pós-doutoramento na Universidad Carlos III, em Madrid, na Espanha. Em 2009, assumiu o cargo de professora adjunta do Bacharelado em Biblioteconomia e Documentação do Núcleo de Ciência da Informação da Universidade Federal de Sergipe (UFS), tornando-se a decana do curso. Além da docência, Valéria atua como pesquisadora no Observatório de Histórias em Quadrinhos (OHQ), na USP e, também, como especialista no Programa de Formação Continuada a Distância em Mídias na Educação “E-Proinfo”, do Núcleo de Comunicação e Educação (NCE/USP). Na área de Biblioteconomia, atuou, profissionalmente, em acervos especializados, públicos, universitários e escolares. Na área da Arquivologia, atuou em acervos documentais de Medicina, Engenharia Elétrica e Eletrificação, Jornalismo e Editoração.
Segue-se, abaixo, a entrevista.
Prof. Dr. Waldomiro Vergueiro
Como surgiu o seu interesse por histórias em quadrinhos?
Como fui uma leitora precoce, tendo sido iniciada minha alfabetização aos quatro anos, creio que os meus pais tiveram o bom senso de observar que a História em Quadrinhos era a literatura mais adequada para minha faixa etária na época. Eles mesmos, um casal de leitores muito eclético, eram fans do Garra Cinzenta, tira policial do Francisco Armond e Renato Silva, ao ponto de eu não pedir a mão aos meus pais, sempre pedindo que me dessem “a garra”. Seguimos por toda a minha infância lendo em família, sobretudo aos domingos, quando meu pai adquiria o exemplar de O Estado de São Paulo, que neste dia da semana é conhecido como Estadão. Liamos juntos, pai, mãe e minhas duas irmãs, todas as tirinhas da King Features e, mais tarde, outras HQs e entretenimentos no suplemento dominical O Estadinho. Na minha adolescência, estabeleci novas fronteiras para o meu gosto pessoal, utilizando meus recursos financeiros próprios (sem mesadinha, trabalhando) para adquirir títulos da Codecri e da Editora Vecchi, respectivamente as revistas Graúna (do Henfil) e MAD. Paralelamente, fui uma das leitoras mais assíduas e profícuas da Biblioteca Pública Infantil Viriato Correia, além de outras bibliotecas que podia frequentar e tantas outras que ajudei a organizar em minhas poucas horas vagas, pois tive meu primeiro cargo público aos 14 anos.
Quais foram os primeiros quadrinhos que leu? E qual o seu gênero favorito?
A primeira História em Quadrinhos que me recordo de ter lido foi uma tira do Recruta Zero (Beetle Bayley), do Mort Walker, no Estadão, que adoro até hoje.
Qual o seu personagem, roteirista e desenhista favoritos?
Meu personagem favorito, desde que o conheci até a atualidade, é o Homem-Aranha. Ele é um personagem mainstream, da Era de Prata Norte-Americana, que já foi “reciclado” muitas vezes, mas ainda não conseguiram tirar de Peter Parker a “aura adolescente”, o encantamento de uma pessoa que se torna maior que a sua condição de vida, que aprende com seus próprios erros, que se transforma no símbolo do bom vizinho. Na atualidade pós-moderna, muitos incorrem no erro de apagar de suas vidas as cercanias reais, para mergulhar em relacionamentos desterritorializados, e o Homem-Aranha permanece para nos lembrar do “amigo da vizinhança”, significativo nos momentos de convívio ou risco social real.
Meus roteiristas favoritos são dois: Gedeone Malagola e Marcelo Cassaro. O Sr. Gedeone manteve acesa e viva a chama da história em quadrinhos para adolescentes e adultos no Brasil, em plena ditadura militar. Seus roteiros eram cuidadosamente pesquisados e ele sabia “inspirar-se” nas HQs mainstream norte- americanas, na medida certa para criar enredos que somente poderiam ocorrer no nosso Brasil. Quanto ao Marcelo Cassaro, este é realmente um roteirista que sabe narrar, é um contador de histórias, tem um ritmo narrativo que prende a atenção na leitura, é surpreendente, uma mente pensante no meio desta grande crise de criatividade entre os roteiristas do séc. XXI.
Meu desenhista favorito, inigualável, é Winsor McCay, autor da obra Little Nemo in Slumberland. Vejam que é uma produção dos anos 1900 e, até hoje, existem milhões de “homenagens”, “citações”, “cópias” e que tais, inspiradas nesta incrível obra. É um quadrinho autoral e McCay também era responsável pelos roteiros, muito divertidos, que sempre tinham fim quando Nemo acordava em sua cama. As soluções para que Nemo acordasse na posição em que o sonho era interrompido são simplesmente o máximo! Esta obra está em domínio público e pode ser lida pela Internet, vale a pena.
A adaptação de HQ que eu mais gostei foi a da obra Dick Tracy, que é uma tira de autoria de Chester Gould. Como este autor utilizava-se em sua narrativa de um grande número de deformações expressivas, creio que o recurso da maquiagem e da interpretação dos atores foi muito bem dirigido, para que a linguagem cinematográfica fosse perfeitamente explorada no enredo (e não no efeito ridículo que isso poderia causar nas telas).
Não digo que tenha detestado alguma adaptação de HQs para o cinema, mas é claro que existem casos nos quais os aspectos visuais foram preservados, os efeitos especiais foram enfatizados, e a verdadeira razão de ser daquele enredo se perdeu. Este é bem o caso da filmagem de Elektra Assassina, adaptada dos quadrinhos de Frank Miller, que foi um filme tristemente fraco, creio que foi de 2005.
Em que momento, os quadrinhos deixaram de ser apenas uma predileção e passaram a ser, também, objeto de estudo para você?
No momento em que ingressei no Bacharelado em Biblioteconomia na Escola de Comunicações e Artes – ECA/USP, em 1986. Decidi que, já que ia trabalhar com leitura, faria de minha leitura preferida um recurso para a formação de mais leitores. Assim, poderia ser uma profissional bibliotecária voltada para o êxito dos usuários com relação ao gosto pela leitura, o prazer de ler e a difusão do conhecimento, da arte, da poesia e da felicidade que estão armazenadas nos registros escritos.
Admiro profundamente o Prof. Waldomiro Vergueiro e a Profa. Sonia Bibe Luyten. O Prof. Waldomiro eu conheci desde criança, pois frequentei uma biblioteca na qual ele trabalhava, a do Instituto Biológico, em São Paulo. Eu era então uma adolescente terrível, que queria e consegui ser atendida inúmeras vezes por ele, num espaço especializado e voltado para adultos. Colhi o que plantei, ao reencontrá-lo como um professor muito exigente e erudito, na já referida Escola de Comunicações e Artes – ECA/USP. Ele é um educador de verdade, um pesquisador que contribuiu de maneira vital para a Ciência da Informação no Brasil e jamais deixou de defender o valor e as propriedades da História em Quadrinhos, dentro e fora da academia. Foi meu orientador de TCC, do Doutorado e até hoje estamos trabalhando em pesquisas e publicações conjuntas.
Quanto a Sonia Bibe Luyten, foi aquela pesquisadora idealista e fundamentada que nos trouxe uma das mais proeminentes e importantes pesquisas sobre o Mangá, o que já teria muito valor se não estivéssemos em meio a Ditadura Militar, imaginem que perigo. A coragem da Profa. Sonia e a procedência de suas pesquisas ajudaram a elevar a condição dos demais pesquisadores sobre a História em Quadrinhos e, atualmente, a temos como uma das principais conselheiras e avaliadoras das principais premiações acadêmicas sobre o tema no Brasil.
Como foi o seu primeiro contato com o Observatório de Histórias em Quadrinhos (OHQ)? E como surgiu a oportunidade de integrá-lo?
Quando foi aberto o Núcleo de Pesquisas de Histórias em Quadrinhos, no ano de 1990, eu estava concluindo minha graduação em Biblioteconomia. Após um período de empregabilidade, passei a frequentar as reuniões do NPHQ, ao mesmo tempo promovendo oficinas culturais de Redação de Histórias em Quadrinhos e Redação de Aventuras de RPG na Biblioteca do SESC Carmo, a partir de 1991. Desde então, fui me qualificando como pesquisadora no NPHQ. Quando o NPHQ foi renomeado como Observatório de Histórias em Quadrinhos – OHQ, eu já estava apresentando pesquisas próprias e publicando trabalhos vinculados às suas atividades por cerca de uma década.
Em sua tese de doutorado, intitulada O potencial das histórias em quadrinhos na formação de leitores: busca de um contraponto entre panoramas culturais brasileiro e europeu, você analisa a importância dos quadrinhos no desenvolvimento do gosto pela leitura das crianças. Quais as diferenças entre o Brasil e a Europa nesse quesito?
A diferença é muito grande. Aqui no Brasil, fomos influenciados por uma obra pseudo-científica sensacionalista, denominada A Sedução dos Inocentes, de autoria de um analista alemão chamado Fredric Werthan. Esse senhor criou uma onda de histeria nas Américas, ao vincular a leitura de Histórias em Quadrinhos à delinquência juvenil, pedofilia, paranoias e adicção por drogas entre os jovens, nos anos 1950. Na Europa, as teorias deste autor foram solenemente ignoradas e os jovens e adultos seguiram lendo seus quadrinhos tranquilamente.
Assim, quando fui investigar a relação com a leitura de histórias em quadrinhos na Europa, descobri que elas eram frequentemente utilizadas como material de formação de leitores, material para estudo de língua falada e escrita por estrangeiros em migração, literatura presente nas bibliotecas públicas e domésticas. Os álbuns são muito bem editados, com qualidade, voltados para um público leitor exigente, estão disponíveis em toda livraria. Também vi muitas comic-stores especializadas, frequentadas por mulheres, crianças, jovens, executivos, com oferta de todo o tipo de quadrinhos autorais, além dos mainstream importados também. Na Espanha, os problemas educacionais derivativos da Ditadura Militar de lá foram dirimidos em duas décadas de trabalho dos educadores, com recursos mínimos, já que a população gosta de ler e valoriza os professores.
No Brasil, mesmo passados 5 décadas da edição da fatídica obra de Werthan, temos um quadro de pouca credibilidade da História em Quadrinhos no ambiente escolar e bibliotecário. As livrarias não se interessam e até deixam de expor álbuns de HQs com destaque, como se estivessem envergonhadas de vender este material. As famílias forçam os jovens a se desfazer de suas coleções, inclusive jogando-as no lixo comum, imaginando que este ato não prejudicará a formação leitora de seus filhos. E isso é muito trágico, num país que tem altos índices de analfabetismo e fracasso escolar. Desta forma, estamos em desvantagem cultural em relação a muitos países dos cinco continentes, que estão economicamente muito semelhantes a nós.
No Brasil, há quase uma década, as histórias em quadrinhos ganharam um status de destaque, principalmente, por conta das edições de luxo (algumas, bastante caras), que estão em abundância nas livrarias. Você acha que o consumo desse material está perdendo o seu caráter popular e se tornando, cada vez mais, elitizado?
Creio que o álbum de luxo vem para dignificar a História em Quadrinhos e fazê-la ocupar novos espaços sociais. O quadrinho de consumo, que compramos nas bancas (e hoje em dia nos supermercados e outros pontos comerciais) é que não pode perder sua importância e sua função. Na verdade, estamos vivendo um momento de aproximação com o cenário europeu e isso é muito bom. Como eu havia descrito, a Europa respeita seus autores e dá aos quadrinhos status literário. Precisamos deste conceito no Brasil, para ampliar as oportunidades de formação de leitores. Os álbuns também são viáveis para a formação de acervos em bibliotecas públicas e escolares, com maior durabilidade e possibilidade de circulação que o “gibi” popular (rapidamente desgastado com o uso).
Muitos leitores e pesquisadores avaliam negativamente a venda de quadrinhos em livrarias. Todos os tipos; desde Maus, de Art Spiegleman, à Turma da Mônica, por exemplo; são expostos numa mesma seção QUADRINHOS, não ocorrendo uma devida avaliação do conteúdo que é colocado à venda. O que você sugere para minimizar essa situação?
As livrarias expõem a História em Quadrinhos de forma primitiva, pois nossa relação no Brasil com esta leitura é igualmente primitiva. A maioria das pessoas que está consumindo HQs na atualidade brasileira ainda não vislumbrou a existência dos gêneros e da produção segmentada por faixas etárias. Porém, grandes redes de vendas de bens culturais à varejo, como a Saraiva Megastore, a Livraria Cultura e outras congêneres já estão cuidando mais da classificação e exposição destas obras, numa tendência que será acompanhada pelos estabelecimentos menores. Esta tendência irá se acentuar, a medida que a Internet começar a representar uma competitividade aos estabelecimentos presenciais, pois a classificação das edições em papel já existe ali, além do que se pode consumir diretamente a HQTrônica.
As gibitecas, atualmente, são uma realidade em várias cidades do Brasil. Na condição de bibliotecária, no que elas podem influenciar em uma comunidade?
As gibitecas, quando bem organizadas e geridas, podem ser UMA POTÊNCIA na formação de leitores, principalmente nas mais tenras faixas etárias, mas também de grande influência na formação de hábitos e gostos leitores dos adolescentes e adultos. Estamos na Era da Informação, ou seja, no momento da história da civilização no qual a leitura adquire um caráter extremamente importante, como elemento indispensável ao pleno exercício da cidadania. Assim, temos que nos apropriar da História em Quadrinhos como nossa aliada na formação de leitores, assim como propagadora de conteúdos complexos na sociedade, nos utilizando de todos os seus recursos linguísticos e afetivos para isso. Pois, afinal, AS PESSOAS QUEREM LER HISTÓRIAS EM QUADRINHOS!!!!
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