As
cidades obscuras de Peeters e Schuiten
Prof.
Dr. Roberto Elísio dos Santos[1]
Italo Calvino
O escritor cubano-italiano
(1923-1985) apresenta cidades, todas elas com nomes femininos, citadas por
Marco Polo a Kublai Khan. Por serem invisíveis, não é possível encontrá-las.
Assim é que, ao longo de milênios, existem as que são mundialmente conhecidas,
as desconhecidas e as esquecidas (encontradas apenas por arqueólogos
diligentes), grandiosas em seu apogeu e enterradas sob terras e areias na sua
velhice. Há também as míticas, contadas em textos de ficção a partir da
imaginação criativa de poetas e romancistas, como Atlântida e Eldorado.
As cidades
imaginadas pelo pesquisador e roteirista francês Benoît Peeters e pelo quadrinista
belga François Schuiten, que utiliza o estilo da linha clara, possuem
arquitetura retrô-futurista, com prédios envidraçados, rampas, escadarias e,
como em Brentano, de L’ombre d’un homme, adereços nas mobílias e
edificações baseados nas fotografias de plantas em close-up
feitas pelo escultor alemão Karl Blossfeldt, cujo nome foi simplificado para
designar a urbe onde se passa a história. Os helicópteros, bondes e trens
seguem a mesma forma, misturando elementos antigos e modernos. É por este
ambiente que vaga o homem cuja sombra vai se transformando. Cada história é
focada em homens doentes e melancólicos, que, como sonâmbulos ou “bêbados sem
alma”, parecem percorrer locais oníricos, de pesadelos, labirínticos, que
escondem segredos. As mulheres, por sua vez, são, ao mesmo tempo, sensuais,
corajosas e impetuosas, a exemplo de Sarah, Sofia e Milena, entre tantas outras.
Talvez a
inspiração para Les
murailles de Samaris
tenha sido a cidade murada histórica Samaria, localizada na atual Cisjordânia.
Atualmente, sobraram ruínas, colunas, caminhos largos calçados com pedras e habitações
rústicas intactas. No álbum, ela é
apresentada como “uma arquitetura que parecia se misturar”, com edifícios altos
e construções palacianas e religiosas, mas “conservando os traços das
civilizações que abrigou” ao longo do tempo. Pode-se observar, também, a
combinação de componentes de várias épocas nos figurinos usados pelos
personagens. É ali que um flâneur procura descobrir os segredos do local,
sem deixar de observar ruelas e seus habitantes, para escrever um relatório
para os governantes da metrópole imaginária de Xhystos. Enquanto caminha,
percebe a “bizarrice” das janelas e portas sempre fechadas, a ausência de
crianças e a impressão de que as construções mudavam de lugar.
Em La fièvre
d’Urbicande, ao contrário, tem como cenário uma cidade toda projetada em
linhas retas. A narrativa tem início com a petição escrita pelo “urbicteto”
Eugen Robick, ao qual desagrada o estilo barroco e de arte nouveau de Xhystos e
outros lugares – os números dos capítulos possuem um design construtivista. Seu
objetivo é conseguir construir a terceira ponte entre o norte e o sul,
separados por um rio, para que seu projeto arquitetônico seja completado e para
que haja uma harmonia estética. No entanto, as autoridades não desejam a junção
das duas margens por questões xenofóbicas, políticas e sociais. A mudança
começa quando ao protagonista é entregue um cubo feito de material (minério?)
desconhecido que cresce “como uma planta” e acaba por ligar os dois setores. Em
princípio, a situação é vista como ameaça, principalmente por um político
conservador. Depois da união, a estrutura permite o encontro e o intercâmbio
dos habitantes, que promovem festas. A ampliação da edificação continua, até
ela desaparecer no céu, o que força a confecção de uma ligação entre os dois
espaços.
La Tour, da mesma forma que La fièvre d’Urbicande,
é impressa em preto e branco, à exceção de imagens pintadas e a parte final,
que se passa fora da Torre. O principal personagem, Giovanni Battista, é um
conservador – sua missão é manter a construção intacta e consertar as paredes
quando as pedras usadas se soltam. Esperando, em vão que um inspetor apareça,
resolve descer. Para tanto, constrói uma espécie de paraquedas que se despedaça
e leva à queda até uma cidade, onde recebe a missão de fazer o reconhecimento
(assim como o protagonista de Les
murailles de Samaris) e
chegar ao topo. Ele aceita o encargo e parte, levando consigo a jovem Milena.
Os trajes lembram o Renascimento, mas a edificação indica que seu começo se deu
eras atrás. Cada pavimento possui estilos diferentes, assim como objetos e
máquinas. O motivo do erguimento dessa obra monumental, inspirando-se em Babel,
justifica-se pelo desejo de “tocar Deus com suas próprias mãos”. Há que se
destacar também o uso de fontes que se assemelham a caracteres romanos
entalhados em pedras, destroços ou restos de colunas que aparecem no início de
cada capítulo.
Outras cidades,
imaginárias ou não, são o espaço das narrativas. Mesmo as existentes, como
Bruxelas e Paris, não como são conhecidas, mas mostradas de formas diferentes,
a ponto de só alguns elementos serem cognoscíveis, sendo um exemplo a Torre Eiffel
envolta em estruturas circulares.
Referências
CALVINO, Italo.
As cidades invisíveis. São Paulo:
Folha de S. Paulo, 2003.
PEETERS, Benoît; SCHUITEN, François. L’ombre dun homme. Bruxelles: Casterman, 1999.
PEETERS, Benoît; SCHUITEN, François Les Murailles de Samaris. Bruxelles: Casterman, 2007.
PEETERS, Benoît; SCHUITEN, François. A febre de Urbicanda. Lisboa: Edições 70, 1987.
PEETERS, Benoît; SCHUITEN, François. A Torre. Lisboa: Edições 70, 2019.
[1] Jornalista, professor
aposentado do Programa de Pós-graduação da Universidade Municipal de São
Caetano do Sul (USCS). Livre docente em Comunicação pelo CJE/ECA-USP e vice
coordenador do Observatório de Histórias em Quadrinhos da ECA-USP.
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